O
Papa da Coerência
Metropolita Hilarion de Volokolamsk
Presidente do
Departamento para as relações exteriores do Patriarca de Moscou
Em
11 de fevereiro passado, o inesperado anúncio da renúncia ao ministério do Papa
Bento XVI surpreendeu profundamente não somente a Igreja Católica, mas toda a
cristandade e a opinião pública mundial. Na sua condição de progressivo
declínio de forças, da qual ele próprio falou, a decisão de deixar o pontificado
deve ser considerada um ato de grande coragem e exemplar humildade.
Neste
nosso mundo em que tantos que não detêm o poder procuram doentiamente
alcançá-lo, e tantos que o detêm procuram, a qualquer custo, não o perder, a
voz humilde do primaz da Igreja cristã mais numerosa do mundo, que diz
renunciar livremente ao exercício da autoridade, por causa da fraqueza física e
para o bem da Igreja, se põe em flagrante contraste com a mentalidade corrente.
Uma vez mais o Papa Bento XVI mostrou-se coerente com a própria linha de
integridade moral e de rejeição de compromisso.
Estamos
certamente ainda muito próximos do anúncio da renúncia de Bento XVI para tentar
um balanço de seu pontificado. Diria, porém, que uma das chaves interpretativas
da figura deste Papa e de seu pontificado talvez seja exatamente esta sua
coerência consigo mesmo e com a tradição da Igreja, o seu não ceder às fáceis
modas passageiras, às fortes pressões da cultura dominante.
Papa Ratzinger é um teólogo de grande inteligência, sem dúvida um dos mais
notáveis teólogos católicos contemporâneos. A sua obra de teólogo, antes e
depois de sua ascensão à cátedra pontifícia – de seus livros sobre a figura de
Jesus às suas encíclicas e exortações apostólicas, da declaração Dominus Iesus ao Catecismo da Igreja
Católica – representa uma contribuição de notável importância à teologia
católica moderna. Um dos argumentos mais tratados por ele, o da relação entre
fé e razão, se põe em continuidade com quanto já dito pelo seu predecessor,
Papa João Paulo II.
Outro tema caro ao Papa Bento XVI, desde o início do pontificado, é o da
reafirmação dos valores morais cristãos, seu firme não à “ditadura do
relativismo”. É uma posição com a qual nós ortodoxos estamos plenamente de
acordo. Hoje no mundo inteiro, mas sobretudo na sociedade ocidental, assiste-se
a uma perigosa perda de qualquer orientação moral. A mentalidade corrente
desejaria cancelar toda distinção ente o bem e o mal. O liberalismo moral
extremista e militante impôs o “politicamente correto” como uma nova ideologia
de massa, tão absolutista quanto os maximalismos políticos que afligiram o
século XX. Se lemos atentamente os evangelhos, vemos que a misericórdia do
Senhor Jesus na relação com os pecadores jamais significou condescender com o
pecado, nem confundir o mal com o bem. Pessoalmente estou convencido de que a
Igreja, hoje talvez mais do que nunca, embora permanecendo aberta a relação com
qualquer um e propondo o caminho da salvação a todo homem, deva oferecer aos
fiéis as linhas de comportamento muito claras. Diria que o atual Pontífice
mostrou claramente como a abertura ao diálogo não deva jamais significar
traição aos mandamentos de Cristo.
Ele
foi frequentemente considerado um conservador ou um tradicionalista, e tal fama
lhe rendeu críticas e uma certa impopularidade. Creio que seja importante
refletir detidamente sobre que coisa significa a tradição para nós cristãos. O
cristianismo é a religião do “já” e do “ainda não”, a religião em que
transcendência e imanência, vida terrena e vida eterna se encontram. Cristo, de
fato, já ressuscitou, uma vez por todas e como primícias de nossa geral
ressurreição; mas a "divinização" de cada um de nós é um processo em curso. Por
isto a Igreja tem uma relação particular com o tempo. A Igreja, e com isto
quero dizer as igrejas apostólicas, se põem sempre naquele contínuo que é a
tradição. Esta palavra, seja em latim (traditio), seja em eslavo (predanie),
indica a transmissão da fé. O testemunho que havíamos recebido dos apóstolos e
de quantos nos precederam no caminho para Deus devemos entregá-lo, todo
inteiro, às gerações vindouras. Temos pois uma responsabilidade de fidelidade.
Sem dúvida Bento XVI enquanto Papa, exatamente como Joseph Ratzinger enquanto
teólogo, é o homem da continuidade, da fidelidade àquela entrega que é a
tradição. Teólogo da continuidade o foi também na sua leitura do Concílio
Vaticano II. Também do ponto de vista da teologia ortodoxa, o último concílio
da Igreja Católica é apreciado não como momento de ruptura com o passado, mas
exatamente o contrário: enquanto e na medida em que se refere à tradição, e
mais, eu diria, retorna a esta.
O pontificado de Bento XVI significou um notável melhoramento de relações entre
ortodoxos e católicos e, em particular, entre Roma e a Igreja ortodoxa russa. O
Papa conhece bem a ortodoxia; o seu amor pela tradição o torna próximo dela. É
necessário dizer que também o conhecimento pessoal influi positivamente nas
relações intereclesiais. O Patriarca Kirill, antes de ser eleito primaz da
Igreja ortodoxa russa, por bem quatro vezes se encontrou primeiro com o Cardeal
Ratzinger e depois com o Papa Bento XVI. Também eu, depois de haver sucedido o
atual patriarca como presidente do Departamento para as relações externas de
nossa Igreja, por três vezes fui recebido em audiência privada pelo Papa.
Conservarei sempre uma excelente recordação de nossas conversações e de sua
pessoa. Não creio que se possa dizer que o seu ser teólogo, homem de pensamento
de posições conhecidas, frequentemente opostas à cultura dominante, tenha
prejudicado o seu ser pastor. Bento XVI é um homem simples, compreensivo, de
grande humildade e sabedoria.
Entre
ortodoxos e católicos, ainda hoje, restam certos nós teológicos a serem desfeitos
e certas feridas a serem sanadas. Tive ocasião de ilustrar a minha visão
pessoal do estado de nossas relações e das perspectivas do diálogo teológico
ortodoxo-católico diretamente ao Papa, nas conversações pessoais havidas com
ele. Devo dizer que nutro certa perplexidade no que tange ao diálogo levado
avante pela Comissão teológica mista: creio que no imediato devir não podemos
esperar progressos significativos. No entanto, nossas posições em outros campos
coincidem perfeitamente, ou quase. Por exemplo, as posições éticas. Devemos
pois investir nestes campos, agir desde já conjuntamente para reafirmar os
valores éticos do cristianismo. Disse-o ao Papa e e encontrei de sua parte
plena compreensão.
Outro
campo em que podemos e devemos agir juntos é o da defesa dos cristãos
perseguidos. A aqui não me refiro somente à África, ao Oriente Médio ou a
alguns países asiáticos, mas também na própria Europa, onde frequentemente os
cristãos são vítimas de marginalização cultural, reduzidos ao silêncio do
secularismo dominante, para o qual a religião é algo que diz respeito somente à
esfera da vida pessoal do indivíduo e que não deve ter qualquer reflexo na vida
social. O Papa Bento XVI disse e fez muito, seja em defesa dos cristãos
perseguidos, seja em defesa dos valores cristãos esquecidos ou pisoteados. Nele
tivemos um bom aliado.
Agora,
com sua renúncia ao exercício do ministério, o Papa ofereceu ao mundo uma lição
de humildade e sabedoria. Faz alguns dias, na Igreja russa, festejamos a
Apresentação de Cristo no templo. Como não recordar aqui o cântico do sábio
Simeão, que a nossa tradição define “aquele que recebeu Deus” (Simeon
Bogopriimec): «Deixai agora, Senhor, vosso servo ir em paz, segundo vossa
palavra». Ao pastor e ao cristão Bento XVI desejamos uma longa, fecunda e
pacífica última idade da vida. Quanto a nós, desejamos que a dinâmica positiva
nas relações entre a Igreja Ortodoxa Russa e a Igreja Católica Romana continue
sob seu sucessor.